(História
de aparente mediocridade e repressão)
Caio Fernando Abreu
Para Rofran Fernandes:
“I announce adhesiveness,
I say shall be limitless,
Unloosen il.
I say you shall yet find the
Friend youwere looking for.”
(Walt Whitman: So long!)
(Walt Whitman: So Long!)
I
A verdade é que não havia mais ninguém em volta.
Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como “um
deserto de almas”. O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído.
E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as
mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de
presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto,
vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de
plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de
imediato outra – talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou.
Não chegaram a usar palavras
como “especial”, “diferente” ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões,
terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece, porém
que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar
entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco
burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças
entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um
casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão
interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez
por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul
ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente
velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.
Passaram no mesmo concurso
para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram
apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul,
prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da
coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal,
nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente,
deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas,
um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa — fados,
astros, sinas, quem saberá? Conspirava contra (ou a favor, por que não?)
aqueles dois.
Suas mesas ficavam lado a
lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no
meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente
de "um deserto de almas", para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou
simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário,
justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois
senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois o que
aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.
II
Eram dois moços sozinhos. Raul
tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do
norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que esse detalhe
não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os
outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não
tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a
não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria
inteiramente verdadeiro.
Além do violão, Raul tinha
um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado
Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de
desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na
parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com
a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho,
colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão
de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio
quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que
desenhava.
Eram dois moços bonitos
também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram
nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos
arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até
mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba
ou datilografa papéis oito horas por dia.
Moreno de barba forte
azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo
profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a
mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil,
talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços,
azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem
terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais
o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um
estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre
aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.
III
Cruzavam-se, silenciosos
mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a
chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um
pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de
parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo,
aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos,
era um jeito que traziam de longe. Do norte, do sul.
Até um dia em que Saul
chegou atrasado e, respondendo a um vago que houve, contou que tinha ficado até
tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um
ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze,
apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e
perguntoü: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley
MacLayne, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais
atento, como ninguém conhece? Eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul
para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio
mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem
parar sobre o filme.
Outros filmes viriam, nos
dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável,
também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperança e
sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma
tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana
obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na
pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da
meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se
encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta,
outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois
nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido.
Atentas, as moças em volta
providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas,
festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram
cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas
histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tú Me Acostumbraste. Nessa
mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis
separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto,
Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos
cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas
exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas
próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas.
Dia seguinte, de ressaca,
Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos
corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tú Me Acostumbraste, entre
inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual.
IV
Os fins de semana
tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul
o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a
gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que
o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira, que
a empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram
no tal deserto, nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se
bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem
cantou foi Raul: Perfídia,La
Barca e, a pedido de Saul,
outra vez, duas vezes, Tú Me
Acostumbraste. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación
llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de buraco e, por
volta das nove, Saul se foi.
Na segunda, não trocaram
um palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes
foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles
percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de
Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à
noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável.
Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo
depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul,
Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do
paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram
atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu
os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como
Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente
preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma.
Aos domingos, agora, Saul
sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o
tempo todo. Enquanto Raul cantava — vezenquando El Día Que Me Quieras,
vezenquando Noche de Ronda —, Saul fazia carinhos lentos na
cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se.
E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia
seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças
não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns
olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada
perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos
para as seis, saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de
Jane Fonda.
V
Quando começava a
primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou
por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do
verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro,
porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a
reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma
coisa.
No norte, quando começava
dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora.
Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que
não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos.
Á noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou
desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel.
Bebeu bastante, nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da
repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco,
abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia
sentir o cheiro do outro. Acordou pensando mãe ele é que devia estar de luto.
Raul voltou sem luto. Numa
sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse
vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul
foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer
mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa
noite. Raul falou longamente da mãe — eu podia ter sido mais legal com ela,
disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem
saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos
tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem,
abraçaram-se fortemente.
E tão próximos que um
podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de
Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba
de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não
diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto
tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma
longa cinza que ele esmagou sem compreender.
Afastaram-se, então. Raul
disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra
coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras
grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo,
olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não
precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou
durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa;
acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem
saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e
confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para
Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde.
Depois, chegou o Natal, o
Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição.
Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na
parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco
chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas
Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos parecem
beijos de quem nunca amou.
Foi na noite de trinta e
um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à
nossa amizade que nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de
deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir
nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse
Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa,
outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro
do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã,
Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas
olheiras.
Quando janeiro começou,
quase na época de tirarem férias — e tinham planejado, juntos, quem sabe
Parati, Ouro Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã em que o
chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o
chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se
a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e
ostensiva", "desavergonhada aberração", "comportamento
doentio", "psicologia deformada", sempre assinadas por Um Atento
Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé.
Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a
outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes
que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio: os
senhores estão despedidos.
Esvaziaram lentamente cada
um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O
sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande
envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul,
que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra
de Tú Me Acostumbraste,
escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto. Desceram juntos pelo
elevador, em silêncio.
Mas quando saíram pela
porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma
penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa
branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos.
Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi,
Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela.
Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina.
Pelas tarde poeirentas
daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no
azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição.
Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para
sempre. E foram.
Nenhum comentário:
Postar um comentário